Português (Brasil)

Da Lei Áurea à Reforma Trabalhista

Da Lei Áurea à Reforma Trabalhista

Compartilhe este conteúdo:
Foto Wanda Ferrera/Jean Davies

“É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil”. Na grafia da época, este é o singelo conteúdo da Lei 3.353, de 13 de Maio de 1888, a conhecida Lei Áurea.

Áureo é adjetivo, ensinam os léxicos,  que remete ao ouro.

Vê-se, portanto, que os editores da lei imaginavam um futuro reluzente para o trabalhador brasileiro.

Superados, a duríssimas penas,  quatrocentos anos de escravidão – estima-se que de cada três escravos africanos aportados na América, dois vieram para o Brasil – regime deplorável sob todos os aspectos, inauguramos o trabalho livre no Brasil.

Fomos o último, é importantíssimo lembrar, país do continente americano a fazê-lo.

O ponto mais remoto do direito do trabalho no Brasil é, então,  a Lei Áurea, considerando-se que o regime anterior, escravocrata, foi de não direito, ou de ausência de direitos.

Ela inseriu no plano do direito positivo brasileiro as primeiras noções em torno do trabalho livre.

As relações entre escravos e seus senhores eram reguladas pelo direito civil, pelo direito das coisas, mais precisamente.

Tem-se uma ideia, então, bem clara, do que pode ser uma sociedade na qual o trabalho  não seja elevado a um valor socialmente prestigiado, como faz a Constituição Cidadã, traduzindo mero insumo da equação produtiva, como era o trabalho escravo.

O direito do trabalho é, portanto, um dos alicerces fundamentais de uma sociedade livre. À falta dele tendemos à barbárie.

Inseridos numa sociedade, num determinado espaço-tempo mais ou menos plano, temos dificuldades em procedermos análises comparativas e, às vezes, não percebemos aquilo que está sempre conosco, sempre ao nosso lado.  Muitas vezes não conseguimos ver o essencial.

Fácil aguçarmos nossa percepção, por outro lado, quando retrocedemos no tempo histórico.

Varredores de rua, professores, servidores públicos, trabalhadores rurais, comerciários, bancários,  padeiros, garçons, vendedores, bombeiros, policiais militares, trabalhadores da saúde, jornalistas, locutores, vigilantes, eletricistas, atores, químicos, carcereiros, dentre outras inúmeras categorias profissionais, todos podemos contar com normas reguladoras de nossas atividades, diversamente do que ocorria aos escravos africanos, que não eram sujeitos de direitos.

O direito do trabalho, mais adiante, desvinculou-se do direito civil por meio de três operações fundamentais: 1) efetuou uma disjunção entre o trabalho valor social (inerente ao homem que trabalha) e o trabalho mercadoria (o trabalho realizado pela máquina a vapor, por exemplo); 2) reconheceu a desigualdade inerente aos contratantes e 3) concebeu tecnologia jurídica apta à regência dessa desigualdade flagrante, que era imperceptível ao direito civil, cuja essência epistemológica ancora-se na ideia de igualdade formal entre os contratantes.

Certo que os contratantes, no campo do trabalho (trabalhador e tomador dos serviços), são, numa estrutura econômica de tipo capitalista como a nossa, desiguais jurídica e economicamente, e que, portanto, as premissas fundamentais do direito civil não eram e não são adequadas à resolução dos problemas laborais,  ergueu-se, então, a nova disciplina jurídica, o direito do trabalho, com vistas ao  tratamento adequado da matéria.

Sofisticou-se, com o tempo, a cultura juslaboral ao ponto de, também pioneiramente na história do direito brasileiro, conceber mecanismo de produção privada, coletiva, de conteúdos normativos, ou seja, o direito do trabalho lapidou mecanismo que possibilita aos próprios atores sociais, coletivamente organizados, criarem normas abstratas capazes de reger as relações jurídicas entre trabalhadores e empregadores de um determinado ramo da economia, abrindo-se  uma janela para algo até então impensado no campo normativo.

Tomemos, por exemplo, a pecuária leiteira comparativamente à mineração - a  exploração de granito - atividades que, na região de montanha, conhecemos bem.  Necessidades de trabalhadores e empregadores  e características operacionais tão distintas, reclamam,  de uma primeira análise, normas setorialmente adequadas: jornadas de trabalho, equipamentos de segurança, procedimentos laborativos, capacitação, enfim, normas que façam sentido em cada atividade.

Iniciar o labor às 4h da manhã, por exemplo, pode fazer mais sentido na pecuária leiteira (a fim de observar os ciclos naturais a que respondem os animais), mas não fará tanto na mineração. Daí o amplo espaço para a adequação setorial das normas relativas ao trabalho em ambos os setores.

A solução jurídica, antes referida, de entregar aos próprios atores socioeconômicos a elaboração das normas adequadas -  por meio dos acordos e convenções coletivas de trabalho - imprime uma característica extraordinariamente flexível ao direito do trabalho e aqui é imperioso suspeitar de discursos que o classificam rígido em demasia.

Absolutamente não é verdade. O direito do trabalho é, quiçá, uma vez que entrega aos próprios interessados a criação das normas abstratas setorialmente adequadas,  o ramo do direito mais flexível dentre os que conhecemos.

Não se tem notícias, com efeito, de criação de normas civis, tributárias, administrativas, penais, nem mesmo no direito do consumidor (que procurou, sem sucesso, espelhar, nesse ponto, o direito do trabalho, propondo convenções coletivas de consumo) por meio da atuação dos próprios atores sociais.

À introdução, figuremos o exemplo, de uma nova tecnologia na produção leiteira, ou na mineração, para ficarmos nos setores antes citados, os Sindicatos representativos das categorias econômicas e de trabalhadores poderão, de imediato - desnecessário pensar em projeto de lei, deliberação do congresso nacional, sanção pelo executivo - iniciar tratativas para a alteração das regras anteriores que podem  tender à obsolescência por conta da nova tecnologia.

A verdadeira reforma trabalhista, então, se a intenção for tornar menos complexa a regulação do trabalho, seria aquela que procurasse revitalizar e aprimorar os mecanismos coletivos autônomos de produção do direito. O exato oposto do que fez a dita reforma trabalhista.

Com a opção legislativa encampada pela reforma, a verdade é que temos visto a  ampliação de assimetrias no mundo do trabalho, abrindo campo para precarizações de toda ordem. Assomados aqui os efeitos das chamadas tecnologias disruptivas, o quadro já desalentador a que assistíamos recrudesce ainda mais rapidamente.

O mecanismo da negociação coletiva  é, então, o instrumento adaptativo, flexível e desestatizado,  capaz de adaptar as normas trabalhistas na medida da evolução da tecnologia, das novas formas de trabalhar e de organizar o empreendimento.

É, então, paradoxal tenhamos pretendido, por meio da Lei 13.467/2017, imprimir flexibilidade ao mercado de trabalho por meio da produção centralizada, estatal, de normas jurídicas. Pior, adotando soluções que desorganizaram o mecanismo da autorregulação setorial, lógica e historicamente mais ágil e sensível às necessidades setoriais.

Quem melhor e mais agilmente - senão os construtores e os trabalhadores do ramo, organizados coletivamente -  poderá mensurar os impactos, por exemplo, na construção civil, de uma crise econômica que afete o setor, a fim de rediscutir a regulação laboral mais adequada ao enfrentamento da crise?

A construção civil - setor que exerce importante efeito multiplicador do emprego - afirmam especialistas, é o primeiro a sentir os impactos de uma crise econômica e o último a dar sinais de recuperação.

O processo legislativo, com suas vicissitudes, em muitos casos, quando chegar a editar uma lei a respeito já terá mudado o quadro socioeconômico que a justificava e isso será causa de descompassos renhidos entre a realidade e o conteúdo normativo, impondo ao judiciário a constante releitura da lei, procedimento que, de sua vez, ampliando as opções interpretativas, acaba por reforçar o quadro de insegurança jurídica,  adelgaçando a previsibilidade do direito.

Em que pese soluções salutares tenham vindo à tona com a reforma, o processo legislativo que lhe deu origem, sejamos honestos, não foi do tipo bom exemplo a seguir.

Todos tivemos conhecimento de que o Senado da República tinha reparos a fazer e, em os fazendo, a bem do devido processo legislativo, devolveria à Câmara Federal o então Projeto de Lei.

Interveio, então, o Sr. Presidente da República, e pactuou com o Senado a edição de Medida Provisória que imprimiria na lei nova a conclusão colegiada do Senado Federal.

A Medida Provisória foi editada. Mas a Câmara Federal, procurando se superpor ao Senado, não lhe deu trânsito.

A Medida Provisória, que, como o nome indica, é um instrumento provisório, caducou.

Resultado:  temos uma lei que representa a vontade da Câmara Federal, desrespeita o sistema bicameral  (porque a vontade do Senado não foi considerada) e faz pouco dos pactos costurados pelo executivo, à época sob o comando de Michel Temer.

A  promessa reiterada da dita reforma trabalhista era, está ainda fresco na memória,  de mais emprego e segurança jurídica.

Hoje sabemos no que deu: estamos  com mais de 13 milhões  de desempregados, afora os desalentados,  e sob insegurança jurídica nunca vista em tema de relações trabalhistas.  Eis a realidade.

Sobre as tecnologias disruptivas, ingrediente a mais a influir no direito do trabalho, com a senadora californiana Maria Elena Durazo (coautora da Assembly Bill 5)  poderíamos indagar: o que há de futuro em se precarizar e mal remunerar o trabalho? O que há de futuro em se lançar milhões de trabalhadores ao desemprego, à desproteção? Seria melhor substituir a formalização do trabalho (empregos formais) pela economia de bicos, que acabará por impor, se quisermos evitar a ruptura do tecido social, a eternização de lenitivos do tipo auxílio emergencial?

A saída está na política. Na boa política, construtora de pontes e consensos à base do diálogo, que sabemos só possível uma vez superadas a polarização e a babel a que assistimos.  Eis a agenda, o hercúleo trabalho que convoca a cidadania. 

Vitório Bianco Neto é Diretor de Secretaria da Vara do Trabalho de Venda Nova

Compartilhe este conteúdo: