Autismo, do luto à luta: um pouco da história de uma mãe
Soraya diz nem se lembrar de quem ela era antes de Davi nascer tamanha a transformação que ele trouxe para sua vida
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Entre umas corridinhas de rua e a introspecção exigida pelos cuidados com suas plantinhas e pelo hábito da leitura, Soraya Camata sempre coloca em prática seus planos de ação para se antecipar e construir a rotina do filho Davi, 18 anos. O rapaz de cabelos cacheados e de olhos azuis como os da mãe está agora matriculado no curso de geologia da Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes.
Por enquanto as aulas marcadas para começar no dia 14 de junho serão online, devido à crise sanitária pela pandemia do novo coronavírus, mas logo que tudo isso passar Davi vai se mudar para Alegre, cidade que sedia o campus onde funciona o curso. Parece uma história comum, mas não é nem para a mãe e nem para o filho. Autista, conquistar uma vaga numa faculdade pública federal não é apenas uma vitória dupla. É uma grande vitória para Davi, sua mãe, para toda família e, principalmente para a comunidade autista, representada por todas as famílias que vivem essa realidade.
Compartilhar a história de Soraya e de seu filho Davi é contribuir para a iluminação de um caminho árduo e cheio de desafios geralmente com uma mãe na linha de frente. “A mãe de uma criança autista enfrenta o mesmo estresse de um soldado em batalha.”, disse Soraya sobre um estudo realizado nos EUA. “E essa luta se mantém ao longo da vida”, arremata.
E se antecipar aos fatos, criando condições para uma rotina 'controlável', faz parte do perfil da mãe que pretende enfrentar os desafios seguintes com algum nível de segurança. Assim que o resultado do vestibular saiu e foi confirmada a vaga de Davi, que passou em segundo lugar, Soraya e o esposo Sérgio Busato foram para Alegre procurar um lugar para Davi morar.
Tudo está certo para Davi assumir sua nova rotina em Alegre, assim que as aulas presenciais retornarem. Ele sabe onde morar, como estão dispostos os móveis e utensílios da casa, qual o percurso terá que fazer e como vai resolver suas necessidades básicas, como alimentação, por exemplo.
“Preferi me antecipar para dar mais tranquilidade para ele e para mim também”, disse a professora. Como nesse período de aulas online há mais imóveis disponíveis, a família conseguiu um bem próximo ao campus.
Para enfrentar melhor as exigências de um quadro de autismo, Soraya e a família aprenderam a se organizar. Depois de cinco anos, ela teve o segundo filho, Daniel, que por crescer dentro da rotina imposta pelas necessidades de Davi trouxe novos desafios para a família. “Daniel foi um bebê que também precisou de muita atenção, pois cresceu buscando o espaço dele, fazendo com que todos amadurecem ao vivenciar situações incomuns no cotidiano. Um desafio o tempo todo”, descreve Soraya.
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O diagnóstico
Desde que Davi era bebê Soraya percebeu que algo destoava do dito normal. Tinha algo que a incomodava e os médicos sempre diziam que tudo estava dentro do esperado. Quando ele passou a frequentar a escola, as diferenças ficaram mais evidentes e a família procurou ajuda para enfrentar as dificuldades dele, principalmente no ambiente social da escola.
Soraya procurou diferentes profissionais, mas foi lendo um artigo sobre autismo que descobriu que todas as características estavam presentes no Davi. “Na época pouco se falava em Síndrome de Asperger. Só conseguimos esse diagnóstico em 2008, quando ele tinha seis anos. Hoje, com as mudanças nos critérios diagnósticos Davi apresenta Transtorno do Espectro Autista (TEA) leve. Chegar ao diagnóstico foi libertador. Foi a resposta que eu buscava e sabia que existia”.
Depois do diagnóstico não foi tão simples, conforme descreve Soraya. Davi foi a primeira criança de Venda Nova diagnosticada com autismo que estava matriculada na rede regular de ensino. “Cada escola onde Davi passou teve que buscar sua estratégia, pois não existia em que se amparar a não ser nas próprias características dele”.
A luta e a nova mãe
Quando uma mãe se descobre numa situação dessas ela precisa elaborar dentro de si uma espécie de luto. É uma aceitação do filho real em detrimento daquele que ela achava que existia e, passado o luto, vem a luta. “Não poderia ter acontecido nada melhor em minha vida do que o Davi. Para eu entender porque era difícil incluir o Davi na escola e ajudar no processo eu voltei a estudar, fazendo da pedagogia minha segunda graduação”.
Em 2013, Soraya foi convidada para estagiar na Coopeducar como auxiliar da professora regente. “Eu sou assim: apareceu a oportunidade eu não recuso. E eu me descobri professora. Descobri também que eu não gostaria de estar em outro lugar”, disse sobre seu novo mundo. Ela continuou a estudar e passou a ser regente de sala. Em 2017 foi aprovada no concurso da Prefeitura e começou a trabalhar como professora da educação infantil se dedicando ainda mais ao estudo da educação especial, especialidade pela qual ela se apaixonou. “A educação especial é a menina dos meus olhos.” Comentou Soraya.
Atualmente, Soraya está na Coordenação Pedagógica do Atendimento Educacional Especializado, um setor da Secretaria Municipal de Educação. “Tudo faz sentido agora. Todo meu processo de vida culminou em algo que tem um sentido maior. Estar ali, lidando com educação especial, é uma realização nunca imaginada. Foi algo conquistado por eu ter vivido esta experiência. E é por tudo isso que eu sou quem sou hoje. Isso tem um significado muito grande. Sempre digo que eu não consigo me lembrar de quem eu era antes da minha experiência como mãe do Davi”.
Tanto as conquistas do Davi como as próprias levaram Soraya para a militância. “A gente precisa garantir os di-reitos que estão na Lei para todos, principalmente para os autistas de famílias sem recursos. Não era para ser assim, mas precisamos lutar para fazer valer direitos já reconhecidos”. Soraya é membro do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência de Venda Nova do Imigrante - Comped e faz parte da Reunida, que é a Rede Unificada Nacional e Internacional pelos Direitos dos Autistas.
A Reunida tem como objetivo promover e fazer cumprir as políticas públicas com base nos direitos das pessoas com Transtorno do Espectro Autista e o Comped é um órgão deliberativo, consultivo e fiscalizador das ações voltadas para a promoção, inclusão social e defesa dos direitos das pessoas com deficiência. A Lei 1.336 de 5 de agosto 2019 criou o Comped, cujos membros foram nomeados no dia 10 de dezembro de 2019.
“Precisamos ter um olhar sobre todos os aspectos, tanto os que estão sob a responsabilidade governamental quanto os da sociedade civil. O aumento do número de alunos com TEA matriculados no ensino regular é uma realidade. Acho que isso quer dizer que cada vez mais o autismo faz parte de nossas vidas e precisamos garantir seu espaço em todas as instâncias. Precisamos proporcionar mais acesso às informações, divulgar os direitos das pessoas com TEA, lutar pela escola pública que acolha verdadeiramente esse público e contribuir para o andamento dos diagnósticos. Precisamos facilitar a vida da família para que o autista tenha oportunidades e possa desenvolver seu potencial”.
Os desafios e as vitórias de DAVI
A escola, naturalmente o primeiro ambiente social fora da família, foi ainda mais desafiador para Davi. E, mesmo sem um plano específico dentro da dinâmica, muitos profissionais se dispuseram a enfrentar o desafio de acolhê-lo com amor e compaixão. “São pessoas com olhar humano, com atitudes inclusivas que fizeram a diferença em nossas vidas de forma positiva. Foi muita bênção encontrar pessoas boas e é nisso que eu sempre me apego para a nova fase de Davi”.
“É uma grande realização. É tudo que eu sempre quis e me esforcei para isso”, disse Davi sobre sua conquista. Antes de chegar a essa vitória, fazer parte da escola regular desde a infância foi fundamental para ele, pois foi lá que ele projetou seus sonhos ao ver a letra 'agarradinha' ou bonita de um colega, ou quando viu todos os amigos andando de bicicleta sem rodinha e lutou para conquistar isso também.
Davi passou por várias escolas e sempre encontrou pessoas que o ampararam. A maior dificuldade inicial dele foi relacionada à socialização e, quando a escola encontrava o caminho, Davi foi descobrindo seus interesses. “Porque os autistas são muito direcionados em seus interesses, têm hiper foco muito definido. Quando as pessoas enxergam as habilidades deles e conseguem aproveitar, alcança-se o resultado”.
Soraya lembra que com adaptações, ele foi conseguindo evoluir dentro da aprendizagem. Para facilitar, a grade curricular foi mais enxuta e o tempo dado a ele para produzir e apresentar resultados foi maior. “Como ele é maduro, sabe o que quer, principalmente em relação a aprender, teve um resultado excelente. Ele gosta de estudar”.
O ensino remoto foi a mais recente dificuldade que Davi teve que enfrentar e justamente no último ano do ensino médio, quando se preparava para o vestibular. “Por outro lado, as aulas online fizeram com que ele desacelerasse, pois ele fazia outros cursos paralelos, como o de inglês. Davi então teve mais tempo para se organizar, gerenciando tudo muito bem depois da ansiedade inicial.”.
A opção pelo curso de geologia traduz bem quem é Davi: um apaixonado pelo tema. “Quem o conhece e soube do resultado logo falou: 'nossa, esse curso é a cara do Davi'. Ele sempre foi curioso e fiz muitas pesquisas para tentar responder as perguntas dele. Quando Davi amanhecia com uma dúvida na cabeça, ele fazia a pergunta durante todo o dia. E eu sempre me rendia e ia fazer pesquisas com ele para saciar sua sede de aprender. No final, o crescimento veio para mim, que me descobri educadora. Ele me fez quem sou hoje e eu sou grata por nossa história”.
(Fotos Wanda Ferrera/Jean Davies)